Comemoração do vigésimo aniversário da publicação de O Alquimista
Em Maio, o escritor brasileiro Paulo Coelho comemorou o vigésimo aniversário da primeira edição da sua obra de maior sucesso «O Alquimista», num evento no Teatro Palacio Valdés, em Avilés, no norte de Espanha. O aniversário é assinalado também numa exposição organizada pela Fundação Óscar Niemeyer, na mesma cidade espanhola, onde é apresentada a obra completade todas as capas das múltiplas versões de "O Alquimista", que vendeu 35 milhões de exemplares no mundo todo, e outros documentos curiosos como uma cópia reproduzida de parte do original e o contrato com o qual foi editado pela primeira vez em 1988.
Mais de 65 milhões de pessoas, em 150 países e de 63 idiomas diferentes, leram «O Alquimista», o que o torna um dos títulos mais lidos. No total, venderam-se 35 milhões de cópias do livro, que relata as aventuras de Santiago, um pastor, que um dia deixa o seu rebanho para perseguir uma quimera. O caminho que faz converte-se numa simbologia da vida do Homem.
Texto de apresentação do Autor na edição especial de O Alquimista
Fase antes de começar a escrever:
«Hoje, ao sentar-me diante desta página, lembro-me de uma noite quente de Fevereiro de 1988, quando me sentei diante de outra página em branco.
Estava muito ansioso, tinha passado o dia inteiro a adiar este momento. Tinha-me levantado cedo, mas decidi ler primeiro o jornal, como se isso fosse uma prioridade. Li-o de uma ponta à outra, incluindo os classificados (eu, que tinha deixado o meu emprego para me aventurar neste mundo "perigoso e imprevisível" da literatura). Após uma hora de leitura metódica e atenta das páginas impressas, decidi que tinha de sair de casa, tentar esquecer estas notícias que, de tão repetidas, deixam de nos assustar. Queria esvaziar a cabeça, como quem arruma a casa, e preparar-me para a página em branco que me esperava na máquina de escrever.
Caminhei com um passo apressado pelo "calçadão" de Copacabana, sentindo algumas saudades de Espanha, onde tinha vivido algum tempo e onde costumava ver o mesmo céu nublado e sentia o mesmo calor pela manhã. A Natureza ao meu redor parecia combater consigo mesma e com os seus elementos; o mar lançava-se com violência contra a praia, o vento sacudia as folhas das poucas palmeiras que sobravam, as nuvens continham tempestades que em breve cobririam a cidade, provocando os engarrafamentos de sempre. O meu coração batia mais depressa do que o normal: tinha uma ideia, tinha uma história, mas não sabia como começar a contá-la.
Já tinha escrito um livro, O Diário de Um Mago, no qual relatava a minha peregrinação por um caminho do Norte de Espanha, que na altura estava praticamente esquecido. Para minha surpresa, o tema despertou uma grande curiosidade no leitor brasileiro, o livro vendia bem e isso implicava a possibilidade de publicar um texto novo. Tinha de aproveitar aquela oportunidade: escrever um livro não transforma ninguém em escritor. Tinha de seguir em frente para que o meu sonho continuasse vivo, para que o rio das palavras não deixasse de fluir.
Voltei a casa. Christina, a minha mulher, não disse nada. Sabia que eu estava a meio de uma tempestade tão forte quanto a que ameaçava cair a qualquer momento sobre a cidade do Rio de Janeiro. Depois de comer, cansado de não fazer nada, caí num sono profundo e sem sonhos. Quando acordei, o relógio marcava as sete da tarde. As televisões da vizinhança estavam ligadas e ouvia o bulício das famílias em casa, que se preparavam para jantar juntas, ver televisão e falar do seu dia. Sentindo-me um pouco culpado, voltei à mesa do escritório e sentei-me em frente à página em branco. Prometi a mim mesmo que ficaria ali pelo menos meia hora, mesmo que não fizesse nada. Lembrei-me de um verso de Fernando Pessoa: "O espelho reflecte certo; não erra porque não pensa."
É isso mesmo.
"Não posso pensar! Tenho de reagir e ser como um lago que reflecte o céu, sem dúvidas." Pus as mãos no teclado da Olivetti eléctrica, presente de um noivado que tinha acabado sem boda.
Queria contar tudo; queria compreender porque tinha adiado durante tanto tempo o meu grande sonho. Queria, sobretudo, demonstrar a mim mesmo que conseguia manter acesa essa chama.
"Como começar?"
Silêncio. Lá fora, o bulício da vida quotidiana parecia suspender-se na noite. Sem querer, ocorreu-me a imagem do mar revolto que tinha visto de manhã. Vi, ao longe, um ponto negro no horizonte, um barco que se preparava para partir, balançando nas ondas. Um homem levantava âncora, com esforço, e partia em busca da sua aventura. Era velho, mas os seus olhos brilhavam com um azul intenso. Reconheci-o.
Santiago.
O Velho e o Mar, de Hemingway.
Santiago!
Fase em que o Autor começou a escrever:
"O velho chamava-se Santiago." E, ao longo do livro, o autor não volta a mencionar nem uma única vez o nome do protagonista; pelo menos, era assim que eu o recordava.
Vi a primeira linha a desabrochar na página: "O rapaz chamava-se Santiago." E, nesse momento mágico, soube que havia um livro por detrás destas palavras simples.
Iria contar a história de outro eu, a história do pastor que sempre fui, embora nunca tenha tido ovelhas, só sonhos. Seria o espelho da minha vida a reflectir todos os obstáculos, todas as encruzilhadas, todos os erros daquele que decide partir em busca do seu tesouro.
Pouco a pouco, a vida deste rapaz foi-se desenhando, página a página, diante de mim. Não dei pelo passar das horas, madrugada fora; as horas transformaram-se em dias e, durante duas semanas, senti não só que me estava a submergir no passado, como também a dar um passo na direcção do futuro. Fui até à Andaluzia, a Tenerife... O vento do deserto roçava-me a pele, o perfume do oásis acolhia-me pela noite.
Que longo caminho percorri desde então! As palavras, as ideias, as recordações e as histórias foram as sendas que guiaram os meus passos. Diante desta página escrita, vejo parte desse caminho que tantas vezes percorri na minha imaginação.
E foi assim que o rapaz encontrou o rei e teve coragem para seguir em frente.
E foi assim que o meu destino se uniu ao seu. Tal como o pequeno barco do velho na sua luta contra o mar e os elementos, consegui resisitir aos ventos, às ondas e à imensidão da vida por ter compreendido perfeitamente uma frase do meu livro anterior: "O barco está em porto seguro. Mas não foi para isso que o barco foi construído."
20 anos depois:
E hoje, em frente a esta página na qual escrevo algumas palavras para celebrar os vinte anos da edição de O Alquimista, agradeço aos leitores, do fundo do coração. O pastor com o seu sonho atravessou fonteiras, descobriu novas línguas, cruzou oceanos. O pastor que eu era e que ainda sou. Em busca de um tesouro e compreendendo, ao mesmo tempo, que o caminho é tão importante quanto a meta a alcançar.
"Já vou, Fátima". Assim acaba o livro; com uma frase, uma pergunta no ar. Espero que consiga regressar ao seu destino, mas que antes desfrute de todos os portos, cidades, paisagens, desfios e encontros com que se deparará pelo caminho. Porque eu também caminho com ele e desejo que a nossa viagem seja longa e cheia de surpresas, cheia de aprendizagens.»
Paulo Coelho
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